sábado, 7 de maio de 2016

CRISTO RECRUCIFICADO

O Cristo Recrucificado – Nikos Kazantzákis

Uma avaliação crítica.
A fascinação de alguns autores contemporâneos – em especial Giorgio Agamben e Alain Badiou – pelo que se convenciona chamar de “cristianismo primitivo” (traduzido na figura de Paulo) não parece irrelevante. Contra um edifício majestoso e opulento de instituições sólidas, mas assassinas, como reagir senão com uma “grande recusa”, recuperando a promessa messiânica de um mundo totalmente outro?

O castelo que constrói Kazantzákis no seu poderoso romance é um emaranhado de cobiça, avareza, mesquinhez, descaso, mediocridade, tudo resumido na mais visível putrefação moral dos personagens (paradoxalmente chamados de “notáveis”). Nada sobra nesse mundo corrupto onde o notável recusa dar pão ao estrangeiro pelo mais puro egoísmo, quase gratuidade do mal. As pretensas “personalidades” da aldeia onde se passa o romance são figuras grotescas que parecem os juízes de Kafka a esconder revistas pornográficas em meio a livros de “doutrina”.
Nesse mundo insuportável onde o menor vestígio de resposta à hipocrisia e mediocridade é tratado como grave ofensa resta pouco da vida que merece ser vivida. Manólios e seus amigos vão buscar no ascetismo uma alternativa inicial.
Mas os estrangeiros que chegam na aldeia e passam fome precisam de ajuda – uma muito mundana ajuda – e é nesse momento que a chama da indignação e ascese do cristianismo de Manólios percebe que Cristo é o pobre que passa fome, exigindo uma justiça muito real e concreta. Não é preciso ser cristão nem acreditar em dogmas teológicos, metafísicos ou místicos para perceber aí que o cristianismo primitivo carrega uma sabedoria que obviamente incomoda o poder, pois pede justiça para o oprimido em um mundo onde essas pretensões são abafadas pela hipocrisia majestosa das instituições que a sustentam. E – de certa forma se ligando ao judaísmo – essa justiça não é um gesto de amor e perdão, mas a implacável suspensão da injustiça, ainda que a custa da violência.
Bolchevique ou cristão, não importa, Manólios é a vida nua que exclama diante da indiferença que deixa morrer. A injustiça de todos os dias e cujas instituições (pretensamente) cristãs não cansam de negar e naturalizar.  Instituições que parecem ter nascido justamente para neutralizar esse potencial subversivo, indomável, desmascarador de uma fé que nasceu para recolher os restos da história e redimi-los em meio à violência onipresente, praticando uma mensagem de amor à alteridade que acabou domesticada para conservar tudo aquilo contra o qual ela lutava.
O Cristo Recrucificado 
- Resenha - 12/10/2009
Cristo Recrucificado, de Nikos Kazantzakis, retrata, a princípio, um episódio relacionado a uma pacata aldeia grega na Anatólia, atual Turquia. O autor não perde tempo para exaltar o espírito grego já no início e ao decorrer de toda a sua obra, com metáforas e belas hipérboles saudosistas. Desde a entrada, fala de uma Grécia oprimida, sufocada, onde seu povo tem de submeter ao domínio turco, mas que ainda respira sua cultura clássica e a gloriosa história helênica, jamais sucumbindo de forma total à ocupação estrangeira. Tal concepção e idéias têm um grande destaque através do mestre-escola da aldeia, que proclama versos e triunfos passados de seu povo, sempre tentando reacender o espírito patriótico e nacionalista deste último. E eis mais uma grande indireta análoga: o personagem que tanto exalta a triunfante Grécia na obra, é, na verdade, um homem oprimido e medroso, que tem uma morte pífia e não muito significativa ao longo da obra.
O livro é um pedido de socorro e, ao mesmo tempo, uma explícita denúncia contra ricos, homens corruptos, eclesiásticos egoístas e a fria individualidade humana, onde só prevalece um egocentrismo exagerado. A tragédia é o picadeiro para todas as pretensas idéias do autor, chegando a chocar, seja por um cunho religioso ou não, o leitor. Padres vaidosos que discorrem sobre o amor ao próximo na igreja, não o fazem na esquina da rica Aldeia de Lycovrissi; ricos colocam em xeque os próprios entes pelas suas fortunas de forma exacerbada e tragicamente ridícula; a luta vã e continua entre homens, promovida por uma comodidade espantosa que se apavora com qualquer novidade externa, temendo que a mesma destrua a harmonia encontrada pela facilidade e a forçosa cegueira para a miséria humana, são alguns dos exemplos dramáticos das exposições feitas por Nikos nesta grande obra-prima.
Ao contrário do que muitos pensam, devido a um título meio atípico, ao toque de tragédia e denúncias que condenam comportamentos infindos, o livro não é uma lasciva de veneno. Muito pelo contrário: é um livro que escancara uma profunda fé. Percebe-se o quão profunda é esta fé nas divagações religiosas em que os personagens se prontificam, e até em inúmeras partes onde o próprio narrador parece assumir posição, falando por si mesmo ou concordando com os atos de fé cristã e suas ações. Há um envolvimento notório do próprio autor em cada abordagem de tema, chegando a parecer uma leitura bastante tendenciosa. Na verdade, não é o propósito. Eis o tal: uma sincera perspectiva de um homem. Trata de algo bastante real: a fé, a traição, a mentira, a derrota e o dissabor do cotidiano humano, sempre ressaltando a figura de Cristo em comparações com seus sacrifícios e sua sabedoria.
Uma palavra bastante conveniente para esta obra é “analogia”; e um adjetivo, para deixá-la mais eficiente é “brilhante”. Pois temos uma analogia brilhante nesta magnífica obra-prima grega. Uma literatura não muito conhecida mundo a fora, mas que vale a pena ser explorada, e acredito ser este um dos livros mais interessantes para que se processe o afã por desbravar a escrita contemporânea helênica.
A analogia explica tudo. Temos uma denúncia transparente e concomitantemente fabulosa nesta obra grega. Deixemo-la com certa tristeza ao ver o quão ainda é real a tragédia que ela esboça. O Cristo, no caso da obra, é personificado por um ordinário pastor que faz um auto-sacrifício mortal em benefício aos demais. E ,como a obra demonstra, tal sacrifício não promove o efeito esperado. Vemo-nos após dois mil anos, e Cristo ainda continua sendo recrucificado através daqueles que acreditam nos valores e princípios, mas que acabam sendo atropelados por homens ávidos por poder e repletos de luxúria que só abrem seu olhar para suas próprias conveniências.

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