quarta-feira, 13 de abril de 2016

SUA HUMANIDADE

UM TESTE PARA A SUA HUMANIDADE!
"A escolha define seu lugar: o polo da solidariedade, da partilha, da paz, da compaixão ou o polo da propriedade privada, do direito de ficar milionário sobre a miséria de outras pessoas, do ódio e da grana."
A OCUPAÇÃO NA ZONA SUL DE SÃO PAULO - UM TESTE PARA SUA HUMANIDADE
Mais de 3 mil pessoas ocuparam na madrugada de sábado (9) um terreno de 1 milhão de metros quadrados no Valo Velho, extremo sul de São Paulo, e que há 30 anos encontra-se abandonado sem função social. Prevê-se que em poucos dias este número deverá dobrar. 
A posição de cada pessoa na cidade de São Paulo em relação a esta ocupação define a maneira como cada qual enxerga a humanidade e sua própria humanidade. É um verdadeiro teste para sua humanidade.
Como é isso?
Pode parecer paradoxal e agride o senso comum construído ao longo de séculos de capitalismo, mas a verdade é que quanto mais você liga-se ao outro, mais você constrói sua humanidade e é capaz de relacionar-se consigo próprio. Houve um filósofo no século 20 que formulou isso de maneira definitiva. Escreveu Martin Buber: “O homem se torna EU na relação com o TU”.[i] Para os cristãos, este é o sentido preciso do pecado original (que nada tem a ver com as versões falsamente moralistas que se cristalizaram ao longo da história): no momento em que Adão e Eva deixam de olhar um para o outro e para Deus no Jardim do Éden e passam a olhar para seus umbigos, reduziram-se ao egoísmo. Perderam sua ligação consigo próprios, coisificaram-se, tornando as coisasmais importantes que o universo das relações. 
O capitalismo é o império da coisa. Dinheiro, poder, lógica de vitória contra o outro, conquista. Isso importa, nada mais. E cada qual que cuide de si. O Estado serve apenas para evitar que os que não têm dinheiro, poder, os derrotados, os “conquistados” rebelem-se contra esta lógica implacável. Simples assim, e isso se agravou sem medida com o advento do neoliberalismo na segunda metade do século passado. Portanto, cada qual com seus problemas. O dramático é que este jeito de ver a vida é vendido como caminho de libertação do indivíduo. Mas é prisão. Quanto mais os ricos submetem-se aos ditames do que a eles importa (dinheiro e poder), mais perdem conexão com sua humanidade. Nesta concepção, não há espaço para o outro, exceto naquilo que ele servir aos meus propósitos –não existe outro como alguém que me conforma. Existe a grana e, ao relacionar-me com ela por excelência, perco tudo, até meu contato comigo mesmo, pois dinheiro não fala, não ama, não acolhe, não chora, não estende a mão. 
Quer medir sua humanidade? Há dois polos. De um lado, solidariedade, partilha, diálogo, paz, amor. De outro, competição, egoísmo, adoração ao dinheiro, sucesso e poder, ódio. Quanto mais perto do primeiro polo, mais humano; quanto mais perto do segundo, mais des-humanizado. Ao longo da vida podemos mudar bastante nossa aproximação com estes dois projetos de ser-estar-relacionar, por vezes até ao longo de um mesmo dia! Porque somos todos feitos do mesmo barro, luz e sombra, contradições-que-andam. Mas há sempre um sentido no caminhar, na direção de um polo ou do outro. 
A ocupação lá do extremo sul da cidade de São Paulo é um teste para a humanidade de cada um(a) de nós. 
Como? Qual é a realidade que informa a ocupação?
Os dados a seguir foram sistematizados pela Prefeitura de São Paulo, com base nos números do censo de 2010 do IBGE -se quiser, leia clicando aqui e procurando no tópico Renda o link “Pessoas de 10 anos (...)”.
Pois bem.
Em 2010 (quando a economia ainda encontrava-se em vigorosa expansão), dos quase 10 milhões de habitantes da cidade com mais de 10 anos de idade, 4,6 milhões tinham renda entre zero (muitas delas vivendo de benefícios como o Bolsa Família) e até 1 salários mínimos. Isso mesmo. Entre zero e o equivalente, hoje, a R$ 880,00. No caso dos bairros da zona sul, onde ocorre a ocupação, eram, à época, 1,1 milhão de pessoas vivendo nesta faixa de renda –isso mesmo, só na zona sul mais de 1 milhão de pessoas vivendo com no máximo R$ 880,00 a valores de hoje (R$ 510,00 à época). Podemos supor que uma parcela relevante desse mais de um milhão de pessoas têm em casa uma renda familiar construída com o esforço de pelo menos mais uma pessoa; ficaríamos entre zero e até R$ 1.760,00. De lá para cá houve este aumento do mínimo, mas o desemprego também se alargou –segundo o Dieese, a taxa aberta de desemprego na cidade subiu de 11,9% em 2010 para 13,2% em 2015.
Sim. Amigxs, com uma renda familiar ao redor, digamos de R$ 1.500,00 de renda líquida (com os descontos previstos nas relações de emprego formal), quanto se gasta para alimentação/limpeza da casa/higiene pessoal numa família de 4 pessoas? Um número razoável é R$ 600,00 (isso significa menos de R$ 5,00 de gasto/dia em alimentação por pessoa). Mais R$ 400,00 reais num pacote mínimo de água, luz, gás, telefone e de passagens de transporte coletivo além de um eventual vale transporte. Com os $ 500 restantes há que se vestir, realizar pequenas despesas, comprar remédios não fornecidos na rede pública, alguma despesa com a escola das crianças (porque sempre há, não é?), algum lazer mínimo e... pagar aluguel. É possível? Segundo o Dieese, não. Segundo as famílias que vivem nesta faixa de renda e entendem do assunto mais que o Dieese ou IBGE, é mesmo impossível.
O fato insofismável é que o aluguel não cabe nesta conta. 
São pessoas com este perfil de renda que ocuparam o terreno em Valo Velho, lideradas pelo MTST. 
Trabalhadores e trabalhadoras; pintores, eletricistas, domésticas, seguranças, manicures, cabeleireiras, serventes, pedreiros, padeiros, manobristas...
De um lado, 1 milhão de metros quadrados de um terreno que pertence a uma pessoa ou empresa e que está há 30 anos inutilizado. 
De outro, 1 milhão de pessoas (sem contar as crianças com menos de 10 anos) sem ter onde morar, pois o aluguel não cabe na sua conta mensal.
Num polo, o império da coisa, o terreno, a grana, a sacrossanta (para os capitalistas) propriedade privada.
No polo oposto, gente, pessoas em relação, pobres sem nada, à beira da miséria.
Um polo (o das pessoas) avançou sobre outro (o da coisificação). E isso divide a sociedade.
Escute seu coração, sua mente, sua humanidade. Qual o seu polo?
A escolha define seu lugar: o polo da solidariedade, da partilha, da paz, da compaixão ou o polo da propriedade privada, do direito de ficar milionário sobre a miséria de outras pessoas, do ódio e da grana.
Pode não parecer, mas ocupação de um terreno no mais extremo da zona sul de São Paulo por uma pequena multidão de pobres interroga a humanidade de cada pessoa na cidade e no país. 
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[i] BUBER, Martin, “Eu e Tu”, Editora Moraes, São Paulo, 1977.

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